Chá com a bruxa,  História da Bruxaria

Demonização da Bruxaria

Introdução

  • Esse texto será baseado na minha opinião pessoal sobre o tema até o presente momento. Não tenho a pretenção de esgotar o assunto aqui. Espero conseguir dar um ponta pé inicial para vocês estudarem sobre o tema e formarem suas opiniões.
  • Falarei de alguns fatos históricos que possuem relação com o tema e que me ajudaram a formar a minha ideia de como o processo ocorreu.
Entenda os estereótipos da bruxa aqui.

Culturas matrifocais

  • Existem muitos indícios de que as primeiras populações humanas tinham a mulher como alvo de seus cultos. Muito disso tem relação com o corpo feminino ser capaz de gerar vida. Não se sabia da participação do homem nesse processo. Outro fator importante é que a mulher sangrava mensalmente e não morria, outro fator encarado com misticismo.
  • As funções masculinas no nascimento e na sociedade tiveram maior destaque e as mulheres foram sendo colocadas em papéis sociais considerados menores.
  • As mulheres foram as primeiras farmacêuticas, enfermeiras, parteiras, curandeiras, benzedeiras e médicas. Embora nos Estados Unidos 93% dos médicos sejam homens, 70% dos funcionários dos hospitais são mulheres. Essas funções relacionadas a cura foram palatinamente sendo retiradas das mãos femininas por uma sociedade patriarcal e artificial. 
O parto na Idade Média (Livraria Britânica).
O parto na Idade Média (Livraria Britânica).

Helenismo e bruxaria

  • Na Grécia Clássica, existiam dois tipos de práticas mágicas básicas:
    • Magia imitativa ou homeopática, que se baseia no princípio da similaridade, o mágico imita os atos que ele deseja que ocorram, como soprar fumaça aos céus para que nuvens apareçam. Essa é a lei de que o semelhante afeta o semelhante. 
    • Magia simpática há a convicção de que tudo que se faça a um determinado objeto afetará a pessoa a quem ele pertence ou com quem tem ligação. A ação mágica pressupõe a lei da causa e efeito, sendo que seus atos visam atingir determinados fins esperados. Esse tipo de magia se aproxima da ciência, argumentando que ambas as instituições reconhecem uma sucessão de eventos determinada por leis de causalidade (que podem ser previstas e calculadas), e agem de acordo com elas. Então, a magia é, mais que um conjunto de crenças, uma técnica para se atingir certos fins.
  • É difícil fazer uma distinção entre a magia e a religião grega arcaica e clássica. Sendo aquilo que os gregos chamavam de magia frequentemente impossível de se distinguir de suas práticas de culto cívico. Nos Papiros Mágicos Greco-Egípcios, isso se torna evidente, com inúmeros exemplos de práticas mágicas atrelados a divindades.
  • A sociedade helênica deixa claro que os conceitos de magia, bruxaria e religião podem variar de acordo com o tempo e local. 
  • A magia grega é muito pautada na comunicação com os mortos (necromancia), maldições, filtros, poções de amor, estátuas de cera, argila ou outros materiais, lâminas de imprecação, uso de drogas e venenos e oferendas votivas. Tendo exemplos de feiticeiras como Circe e Medéia.
  • Os praticantes de magia poderiam ser divididos em magos (mágoi), purificadores (kathartaí), sacerdotes mendicantes (agurtai), adivinhos (mánteis) e charlatães (alazones).
  • Platão e os Hipocráticos (no texto Sobre a Doença Sagrada) deixou claro em seus textos que os praticantes de magia eram vistos de forma negativa por serem pessoas que alegam manipular as vontades divinas e utilizam seus conhecimentos para ganho pessoal, obtendo fama e riqueza material.
  • Situações como o nascimento, doença, morte, sexo, fluidos corporais, emoções negativas, a prática de bruxaria, feitiçaria ou contato com deuses do submundo eram produtoras de impurezas no corpo espiritual, os miasmas.
  • Antes de iniciar o contato com os deuses e ao término desse contato, é preciso fazer uma limpeza com a água lustral, o khernips. O khernips era preparado com água (do mar ou salgada com sal grosso) e um ramo de erva (arruda, artemísia, alecrim, tomilho, lavanda ou louro). O ramo de erva é queimado e então apagado na água, enquanto se fala “Xerniptosai” – Χερνιπτομαι (pronúncia Zer-nip-tos-aye) que significa “Seja purificado”. Lave o rosto e as mãos com essa água, respigue ao redor do ambiente. 
  • Uma prática mensal de purificação das casas era varrer a casa na lua nova e colocar a sujeira nas encruzilhadas, além de sacrifícios de cães para Hécate.
Ritual do khernipis ou água lustral

Paganismo e o êxtase

  • No paganismo greco-romano possui práticas domésticas e cívicas relacionadas a religião.
  • Ritos Dionisíacos:
    • Também conhecido como bacanal, eram festivais religiosos envolviam festas que tinham danças, consumo de vinho e alucinógenos, práticas sexuais e incorporação de divindades.
    • A festa religiosa também possuía uma ritualística com regras a serem cumpridas. 
    • O Deus Dioniso incorporava em suas sacerdotisas, as mênades ou bacantes, que poderiam ser jovens ou idosas. Essa incorporação só era possível devido aos métodos de alteração de consciência propiciados pelo canto, dança e consumo de leite, mel, vinho e alucinógenos.
    • Em seus cultos eram presentes os sátiros e também o deus Pan.
    • Nesses rituais também era evocada a caça e consumo de animais para honra de Dionísio.
A juventude de Baco (1884), em pintura de William Adolphe Bouguereau (1825-1905).

Cristianismo e Inquisição

I) Início do cristianismo

  • Nas primeiras fases do cristianismo, era uma religião que era voltada na crença de moral e salvação pregada pelo Novo Testamento.
  • Com o desenrolar do tempo, o cristãos passaram a serem perseguidos pelos pagãos por questionar a ordem sócio-política vigente.
  • As mudanças filosóficas da época fizeram com que muitos membros da elite se afiliasse ao cristianismo, aumentando a influência de seus devotos.
  • A Igreja começou a se tornar uma instituição que influenciava nas questões sociais e influenciar nas decisões políticas.
Possível representação do Jesus histórico.

II) Sincretismo religioso

  • O cristianismo passou de religião perseguida em Israel para ser a religião oficial do Imperío Romano em 391 EC pelo Imperador Teodósio, além de decretar aberta a abolição do paganismo. 
  • O calendário da Igreja Católica foi construído sobre diferentes festivais pagãos de novo a adaptar os costumes antigos a mitologia judaico-cristã. Alguns exemplos disso, é a Páscoa cristã sendo sincretizada com os festivais de primavera; o nascimento de Cristo sendo sincretizado com os festivais de inverno; e as festas juninas sendo sincretizada com os festivais de verão.
Dioniso, deus grego do vinho e renascimento, muitas vezes sincretizado com Jesus.

III) Controle do povo

  • Com a queda do Império Romano do Ocidente, a Igreja Católica já está estabelecida e suas decisões tinham muito poder de influência na sociedade europeia medieval.
  • As práticas religiosas cristãs são pautadas na culpa e na punição dos pecadores com uma vida de sofrimento na terra e de danação eterna no Inferno. 
  • A falta de conhecimento de latim, falta de acesso a escolaridade e condições opressivas vindas de todos os lados, fez com que a Igreja tivesse um ambiente propício para manipular o comportamento e imaginário do povo de acordo com seus interesses.
  • O processo de feudalismo na Idade Média levou a consolidação da Igreja Católica Apostólica Romana com uma grande aquisição de poder econômico e político. A Igreja era responsável pela indicação dos reis e justificativa de ser um representante de Deus na terra. Com isso, ir contra o Rei, era ir contra a Igreja e o próprio Deus.
A Santa Inquisição.

IV) Misogenia e Patriarcado

  • A sociedade européia já era predominantemente patriarcal, delegando a mulher funções domésticas e ligadas a maternidade. O papel da mulher nas tomadas de decisão já era inferiorizado desde a Grécia antiga.
  • A mulher agora era considerada a causadora do mal e mais propensa aos pecados com uma justificativa da Eva bíblica.
  • Essa ideia foi reforçada pelo livro guia “Malleus Maleficarum, Maleficas & earum haeresim, ut framea potentissima conterens” ou “Martelo das Feiticeiras o qual destrói as bruxas e a sua heresia, como uma espada de dois gumes” escrito pelos dominicanos  Heinrich Kraemer e James Sprenger, publicado em 1486 ou 1487.
  • Com isso, as mulheres receberam o título de bruxas por excelência e são as servas do Diabo. 
  • Essa mensagem da bruxa diabólica fez com que entre 1450 e 1750, mais de 110 mil pessoas fossem torturadas e mais de 40 a 60 mil delas fossem mortas acusadas de bruxaria. Na Inglaterra era mais comum enforcar as bruxas, enquanto no resto da Europa era mais comum queimá-las.
Queima de bruxa.

V) Manequeísmo

  • A consolidação da figura do Diabo foi fundamental para a Igreja conseguir justificar as atividades desviantes do padrão moral cristão. 
  • Foram criados conceitos de Céu-Inferno, Luz-Sombras, Bem-Mal, a fim de fortalecer no imaginário coletivo que o que não tem procedência do Deus Cristão, automaticamente é obra do inimigo, o Diabo. 
  • Essa figura do Diabo/Satanás foi construída para ter um responsável orquestrando orgias sexuais, missas negras e rituais malignos contra a Igreja e seus seguidores.
  • Muitos elementos pagãos que eram venerados e sacralizados se tornaram símbolo do Diabo, como os espíritos da natureza como as fadas e gnomos, animais noturnos e pretos, a noite, a dança, incorporação, divindades com chifres.
Baphomet, segundo Eliphas Levi.
  • A imagem do Diabo tem elementos de diferentes divindades pagãs como os chifres e corpo de bode do deus grego Pan grego, deus celta Cernuno e o Baphomet do ocultista moderno Eliphas Levi. O tridente era usado por diferentes divindades como o Poseidon.
  • Com isso, as cores vermelho e preto foram adotadas pelos seguidores e animais relacionados ao Diabo.
  • Os festivais pagãos como a festa de Dionísio que pregava a liberdade dos corpos foi associado ao “Sabá das Bruxas” onde o próprio Satanás era convidado.

Racismo religioso e desigualdade social

  • O paganismo era uma prática muitas vezes de povos do campo, embora tenha se tornado um rito cívico em muitos locais como a Roma e Grécia, mas essencialmente era feito pelos agricultores e cidadãos da periferia. Embora em suas raízes o cristianismo também tenha surgido em um movimento da periferia contra o sistema vigente, ele veio a se tornar uma religião da aristocracia. Poucas eram as pessoas com conhecimento de latim para ter acesso as santas escrituras.
  • Com isso, o paganismo foi logo associado a barbárie e selvageria, onde pessoas civilizadas não iriam praticar ele. Isso levou a catequização e apagamento de diversos cultos religiosos dos povos nativos americanos e africanos após o imperialismo e colonização. Processos brutais e violentos que levou a morte muitos nativos.
  • Além do mais, toda religião não-cristã passou a ser considerada maligna. Mesmo povos que não tinham a figura do Diabo ou Inferno em seu repertório religioso, eram consideradas satânicas, ou encaixadas no termo “macumba” de forma pejorativa. Infelizmente até o século XXI ainda sobrevivem esses pensamentos intolerantes que levam a terreiros e membros de religiões de matriz africana serem violentados.

O estereótipo da bruxa

  • A demonologia suméria e babilônica trouxe conhecimentos de demônios que também passaram a ser associados às bruxas. Houve uma construção de que a bruxa era perversa, a feitiçaria era algo praticado a margem da sociedade, feito de forma escondida e era um tabu entre os greco-romanos.
  • Os daemones gregos (mais tarde chamados de demônios) podiam ser bons ou maus como dizia Sócrates. No entanto, Xenócrates, discípulo de Platão, dividiu o mundo espiritual entre os deuses com características benéficas e os daemones com características maléficas. Além disso, as bruxas foram vinculadas a invocação desses daemones, sendo então a base da visão cristã da bruxa maléfica.
  • O cinema moderno continua atuando no reforço do estereótipo da bruxa feia, velha, comedora de crianças, vingativa e adoradora do demônio. Se a bruxa não é maligna, ela é uma fada madrinha realizadora de desejos. Ou ainda, faz parte de um mundo encantado.
  • Esse tipo de deserviço só faz com que continue sendo difícil se declarar bruxa no século XXI. Esses estereótipos continuam sendo montados na mente das pessoas, desde a infância. Ao se chamar de bruxo, você acaba sendo ridicularizado como uma pessoa imatura que brinca com fadas e gnomos ou entra na caixa da adoradora do Diabo que faz trabalhos malignos contra as pessoas.  

A Bruxaria Moderna

  • Com a formalização da Wicca, temos um segmento religioso com base em práticas da bruxaria como uma religião. A sua origem ocorreu com a publicação do livro Witchcraft today (1954) e The meaning of witchcraft (1959), publicados pelo inglês Gerald Gardner.
  • A popularização da Wicca tornou a bruxaria um caminho mais acessível em diferentes países. Ela retoma muitas práticas pagãs e a divulgação de seus dogmas abre caminho para muitas outras práticas de bruxaria menos disseminadas. 
  • Infelizmente como a construção da figura da bruxa foi construída com base na misogenia, patriarcado e demonização, as suas práticas seguem sendo associadas com o Diabo cristão ou sendo ridicularizadas como práticas infantis por conta dos contos de fadas.
  • Não existe a bruxa boa ou a bruxa má, as bruxas só são pessoas. Não se deve generalizar um conjunto de práticas apenas por um praticante. Bruxas possuem emprego, fazem faculdade, tem filhos e pagam suas contas. 
  • Bruxas podem ser o que elas quiserem. Elas são o canal direto de comunicação com seus deuses, não precisam de intermediários. Elas são livres e não gostam de ter seus corpos limitados.
  • As bruxas pós-modernas lutam por seu lugar na sociedade, querem suas práticas e crenças respeitadas e seu direito de liberdade religiosa respeitado. O Diabo é uma criação cristã e a associação dele com as bruxas foi uma estratégia de afastar as pessoas da liberdade religiosa e propiciar o adestramento dos corpos. 

Referências

  1. Russell, J. B. & Brooks, A. História da Bruxaria. 2 ed. São Paulo: Aleph, 2019.
  2. Rocha, C. (2017). As noivas de Satã: bruxaria, misoginia e demonização no Brasil colonial. Cadernos de Estudos Sociais e Políticos, 6(11), 68-79.
  3. Mata, G. M. (2010). As Bacantes de Eurípedes – Menadismo e falocentrismo na pólis ateniense clássica. Alétheia-Estudos sobre Antiguidade e Medievo, 1(1).
  4. Barbosa, L. M. O ritual como festa: o relato euripidiano do culto dionisíaco presente no texto trágico “As Bacantes”. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, julho 2011.
  5. Neto, J. G. (2011). A Cristianização do Império Romano e o Direito (Doctoral dissertation, Thesis, São Paulo,  n. 16, p. 1-12, 2° semestre, 2011, ano VII).
  6. Ehrenreich, B., & English, D. (1973). Bruxas, parteiras e enfermeiras: uma história das curandeiras.
  7. Malleus Maleficarum. Disponível em <https://pt.wikipedia.org/wiki/Malleus_Maleficarum> Acessado em 16/04/2022.
  8. Miasmas e o ritual de khernips. Disponível em <https://www.specula.com.br/post/miasmas-e-o-ritual-de-khernips> Acessado em 16/04/2022.

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