Paganismo
Introdução
- Sabemos que diferentes vertentes de religiões cristãs predominam em muitos países ocidentais. Fomos criados permeados em dogmas e conceitos cristãos que são monoteístas, hetero-normativos, proselitistas, maniqueístas e exploradores da natureza. Estamos em um país laico de maioria cristã e com calendário com datas cristãs.
- Quando isso tudo começou? Quando deixamos de fazer os sacrifícios animais e ir aos festivais pagãos de panteões politeístas? O texto de hoje busca explicar como foi esse processo de retirada do paganismo como predominante até o cristianismo passar a ser a religião oficial do Estado e hoje estarmos vendo um movimento de resgate dessas práticas ancestrais.
Paganismo: conceito
- O primeiro ponto é entender o que estamos chamando como paganismo. Existem diferentes formas principais de usar esses conceitos, como:
- Pagão vindo do latim pagānus, que significa “aldeão”, aquele que mora no pagus, a área rural da antiga Roma. Esse termo é uma oposição a urbanus, que significa “urbano”, aquele que mora na urbus, nos centros urbanos. Algo equivalente ao pagus romano seria a khóra, região rural da pólis, em posição a ásty, área central da pólis na Grécia antiga. Portanto o pagão, seriam pessoas rústicas que moram na área rural da cidade, na periferia, na margem. Muitas vezes eles não seguiam os cultos cívicos conforme os moradores dos grandes centros urbanos e tinham práticas próprias mais ligadas aos ciclos agrícolas.
- Pagão no sentido de praticante de paganismo, que seria um conjunto de crenças não-cristãs que são plurais e diversas, que, em geral, é um movimento religioso politeísta que sacraliza a natureza e realiza ritos sazonais. Ainda nesse sentido, alguns criam a diferença entre os pagãos pré-cristãos para os pós-modernos, chamando os praticantes contemporâneos de neopagãos, isso porque são feitas adaptações das crenças e práticas originais.
- Pagão no sentido de pessoa não batizada ou não cristã. Geralmente esse significado é trazido em contextos pejorativos utilizado por cristãos para se referir aos praticantes de outras crenças.
- Como é possível ver por essas definições, é possível ser considerado hoje um praticante de paganismo, que busca uma conexão maior com a natureza, apesar de ser um morador de grandes centros urbanos. Assim como é possível chamar alguém de pagão só porque não se batizou e não necessariamente é um praticante de paganismo.
- No texto atual iremos usar o conceito de pagão no sentido de praticante de paganismo, em oposição ao praticante de cristianismo.
Perseguição ao cristianismo
- O Império Romano ocorreu entre 27 AEC a 476 EC e se estendeu por várias regiões da Europa, da África e da Ásia.
- Na Palestina, o nascimento de Jesus Cristo estabeleceu o ano 1 da Era Cristã. No entanto, não existe consenso científico se Jesus, como figura histórica, realmente nasceu no ano 1. Com a morte de Jesus, os apóstolos mantiveram a pregação da sua doutrina, principalmente nas regiões da Síria, Ásia Menor, Grécia e Macedônia, nas civilizações gregas, que propagaram o cristianismo no idioma grego. Por 240 anos, entre 64 e 303 EC, o Império Romano perseguiu e torturou cristãos.
- Nesse contexto histórico de brutais perseguições, os cristãos se reuniam para seus cultos nas catacumbas de Roma, de modo que a crença se expandiu no subterrâneo das cidades, principalmente Roma, apesar dos milhares de seguidores martirizados, crucificados, ou atirados às feras na arena dos circos.
Perseguição ao paganismo
- Contudo, em 312 EC, o Imperador Constantino, convertido ao cristianismo, aproximou os cristãos da estrutura de seu império. Sem o apoio de Constantino, o cristianismo teria permanecido seita de vanguarda, sem atingir expressiva parcela da sociedade.
- A vitória do cristianismo foi proclamada, principalmente porque Constantino, ao atribuir sua vitória sobre Maxêncio ao Deus cristão, após a batalha na Ponte Milvia, em 312 EC, não apenas adotaria a Igreja Católica, mas lhe daria uma estrutura privilegiada em relação às demais religiões.
- Os editos eram disposições ou decretos feitos pelos imperadores romanos. Os imperadores Constantino (Império Romano Ocidental) e Licínio (Império Romano Oriental), em fevereiro de 313 EC, com o Edito de Milão, concedeu liberdade de culto aos cristãos e o fim do paganismo como religião oficial do Império Romano. O Edito de Milão teve o intuito de equiparar o tratamento dispensado a cristãos e pagãos, de maneira que consolidou, no oriente, o respeito aos cristãos.
- Em 27 fevereiro de 380 EC, o Edito Tessalônico, do Imperador Teodósio, proclamou o cristianismo religião oficial do Estado. Substituindo o princípio de liberdade religiosa do Edito de Milão.
“Com a maior facilidade, Constantino quebrou o equilíbrio entre as duas religiões, menos se voltando contra o paganismo do que favorecendo os cristãos, mostrava a todos os súditos que seu soberano era cristão, qualificava o paganismo de baixa superstição em seus textos oficiais e reservava as tradicionais liberalidades imperiais à religião cristã (mandou construir muitas igrejas e nenhum templo pagão. Porque, ainda que o paganismo continuasse a ser uma religião lícita e que Constantino fosse
Veyne (2010, p. 29)
como todo imperador, o Grande Pontífice do paganismo, ele se conduzia em todos os domínios, como protetor dos cristãos e somente deles.”
- Em 391 EC, Teodósio, colocou o paganismo fora da lei, ordena o fechamento de templos pagãos, proíbe cultos de mistérios e sacrifícios pagãos. A partir desse momento, começa a Era Cristã e a perseguição dos pagãos politeístas.
- A concentração de poder nas mãos do alto clero criava certa intolerância relativa às demais religiões. Esta associação entre a igreja e o Estado assegurou monoteísmo e grande influência do papel da igreja. Criou-se a identidade romano-cristã que influenciou o poder político, social e econômico da idade medieval.
- Os rituais dos Mistérios de Elêusis foram encerrados em 392 EC pelo imperador cristão Teodósio para não haver ameaças para a difusão do cristianismo. Os locais dos rituais foram abandonados, destruídos ou convertidos em igrejas.
- O templo de Deméter em Elêusis foi saqueado pelos cristãos arianos com Alaric, rei dos godos, em uma invasão em 396 EC.
Resgate do paganismo
- No século XIX, a Europa romântica e nacionalista promoveu uma valorização do termo pagão e trouxe imagens positivas das antigas religiões da Europa, chamadas de pagãs.
- O sentimentalismo se voltará para a valorização de um passado étnico cultural europeu, ofuscado e desestruturado pela invasão da cristandade.
- O paganismo europeu começa a aparecer na poesia, na música, na literatura, nas artes plásticas, em ordens esotéricas e na academia: a imagem da bruxaria como a religião natural e primordial da Europa, com seu culto à Grande Deusa da natureza e seu consorte, o deus de chifres; a retomada dos contos e mitologia nórdica, grega e romana; e o interesse pela herança celta do povo galês, vendo o druidismo como uma consciência benigna de harmonia com a natureza.
- A emergência do paganismo contemporâneo ou neopaganismo vai acontecer após a Segunda Guerra Mundial, ganhando força, um pouco de popularidade e legitimidade, na década de 1970 depois dos fecundos e efervescentes anos 1960.
- A valorização do termo, portanto, é um resgate de um termo pejorativo, pelos novos pagãos ou neopagãos, ao invés de uma nova designação livre de conotações negativas. A segunda razão é que, para o novo adepto, que, na maioria dos casos, era cristão, o termo pagão resume em uma única palavra a quebra definitiva com o cristianismo.
- Muitos dos créditos da popularização do termo pagão ou neopagão, se devem ao folheto publicado em 1970, intitulado “Uma velha religião para uma Nova Era”, da famosa revista Green Egg.
- Atualmente, no Cambridge Academic Content Dictionary (2018) existem duas definições para pagão ambas com conotações religiosas e apreciativas:
- “Pertencente ou relacionado com uma religião que adora muitos deuses, especialmente uma que existisse antes das principais religiões do mundo”.
- “Pertencente ou relacionado com uma religião moderna que inclui crenças e atividades que não são de nenhuma das principais religiões do mundo, por exemplo, a adoração da natureza”.
- A ideia de religião da natureza ou religião centrada na celebração da natureza acaba tornando o termo “pagão” um grande guarda-chuva para adeptos de diversas linhas espirituais e/ou religiosas.
- Existem algumas características comuns ao neopaganismo:
- Ele se desenvolveu dentro da modernidade, mas resgata conceitos e práticas pré-cristãs.
- Existe uma grande pluralidade de práticas e maneiras de se reunir, utilizar fontes e fazer rituais.
- Existem rituais, práticas e orientações comuns aos seus praticantes como o politeísmo e culto a natureza e seus ciclos. O(s) panteão(ões) de culto de acordo com a vertente e praticante.
- Não há proselitismo, então os pagãos acabam não tendo foco em definir crenças como corretas ou erradas e nem em criar novos devotos.
- Práticas centradas em magia e simbolismo. A magia para o pagão é um processo e um recurso para moldar a realidade. Nem todo pagão vai praticar magia através de feitiços.
- Possui práticas centradas na magia. A magia tem muita importância no paganismo e não apenas para fazer feitiços, mas ela engloba toda a realidade, muito além do mundo físico.
- No mundo científico e acadêmico a realidade física e corpórea é supervalorizada, mas no paganismo, elementos sobrenaturais são considerados integrantes da realidade. Por isso, os neopagãos não são negacionistas, porque o natural considerado pela ciência e o sobrenatural considerado pela religião estão intimamente relacionados.
- A popularização em escala global aconteceu na década de 1990, principalmente nos Estados Unidos com cerca de 2 a 3 milhões de adeptos. No Brasil, desde a década de 1970, existe o registro de adeptos do paganismo, mas existem notícias amplamente divulgadas na mídia na Inglaterra desde 1951.
- A Wicca, que tem Gerald Gardner como fundador, é a religião neopagã de bruxaria mais conhecida e com mais adeptos no mundo, acabando gerando grande enfoque das pesquisas acadêmicas em torno dela. Apesar de sua importância ser incontestável para a chegada do paganismo em diferentes lugares no mundo, ela não é a única vertente da bruxaria e muito menos do paganismo.
- A astrologia, Wicca e diferentes ordens esotéricas chegaram ao Brasil através de simples revistas em jornaleiros e acabaram abrindo as portas para a bruxaria e paganismo para muitos jovens que, em sua grande maioria, foram criado com conceitos cristãos.
Cristianismo e paganismo hoje
- Ao meu ver, o grande embate que temos hoje é a visão cristã de ser a única e verdadeira verdade, o que automaticamente leva a pensamentos como “você é cristão ou é o inimigo que precisa ser destruído”. O proselitismo, intolerância e racismo religioso também são temperos importantes que ajudam a fomentar discursos de ódio contra qualquer religião não-cristã.
- Em geral, os neopagãos são pessoas letradas, imaginativas e criativas. Enxergam a magia como a criação da realidade, por isso são ortopráxicos, tendo mais ênfase na conduta ética do que em manter crenças ditas como certas ou inquestionáveis.
- As crenças dos pagãos pode variar drasticamente, desde acreditar que os deuses são seres independentes dos humanos quanto entender os deuses como arquétipos psicológicos, até serem personificações de forças naturais e serem ateus. Em geral, nenhum pagão tenta converter outras pessoas para a sua própria fé, existe um respeito pela pluralidade de crenças.
- No neopaganismo são realizadas práticas antigas, existe um resgate da importância e sacralidade da natureza e também entende-se a importância dos ritos de passagem, seja na vida de cada pessoa (nascimento, puberdade, casamento, velhice e morte), quanto nas transformações na natureza (fases da lua, dias da semana, estações).
- Muitos neopagãos buscam inspiração de suas práticas em religiões pré-cristãs europeias e/ou das tradições indígenas do país e origem dos praticantes. Por conta disso, os neopagãos também buscam muito a prestação de homenagens para os ancestrais e a naturalização de tabus como morte e sexo.
- No Brasil, demos luz a uma vertente do paganismo chamado de pieganismo, paganismo piega ou paganismo piauiense. Nessa vertente são reunidas práticas de diferentes tipos de paganismo reconstrucionistas, bruxaria e diferentes panteões com práticas locais indígenas.
- O paganismo tem um caráter bastante inclusivo em sua origem. Pessoas de sexualidades e identidades de gênero fora do padrão heteronormativo são acolhidas em práticas pagãs. Também é um caminho praticado em geral por pobres e periféricos em sua essência. No entanto, devido a falta de estímulo da leitura, mudanças de paradigmas e desenvolvimento pessoal que é fomentada pela desigualdade social gerada pelo capitalismo, muitas pessoas acabam se sentindo afastadas dessas práticas, gerando muitos adeptos da classe média e alta.
Paganismo x Bruxaria
- Nem todo pagão é da bruxaria, mas todos da bruxaria são pagãos. Apesar dessa afirmação ser quase unânime, ainda existem praticantes que se consideram bruxos e não se associam ao paganismo.
- Nem todo bruxo considera a bruxaria uma religião ou vertente religiosa do paganismo. Alguns tratam bruxaria e feitiçaria como sinônimos. Alguns tratam a bruxaria como um ofício. Alguns tratam a bruxaria como uma prática ou visão de mundo, mas não como religião, incluindo a possibilidade de ser bruxo e ateu. Enfim, existem inúmeras combinações de crenças.
- Nem todo feiticeiro é bruxo, e nem todo bruxo é feiticeiro. Pode haver a prática de feitiços em outras vertentes de paganismo, assim como nem todo bruxo pratica feitiçaria. Existem vertentes devocionais que não incluem a feitiçaria em suas práticas.
- O paganismo como foi debatido anteriormente, é um termo muito abrangente, incluindo outras vertentes onde seus praticantes não se consideram bruxos.
- Na tentativa possivelmente falha de tornar alguns conceitos complexos e amplos, um pouco mais simples, montei o seguinte quadro:
- Perceba que no quadro a cima, possuem apenas alguns exemplos porque seria quase impossível conseguir escrever todas as vertentes de paganismo e cristianismo em um quadro simples. Além disso, fica o alerta que a classificação apresentada não é unânime, pode haver bruxos que não se consideram pagãos e praticantes de strogoneria que não se consideram membros de uma religião com sincretismos, o mesmo pode ocorrer com as outras denominações.
- Um exemplo claro dessa pluralidade é que a Wicca, como vertente da Bruxaria possui inúmeras tradições, entre elas a Wicca Gardneriana, Wicca Alexandrina, Wicca Diânica, Wicca Minoan Brotherhood, Wicca Eleusiana, a Wicca Eclética, dentre outras. Vertentes mais recentes ter menos ramificações, mas é só uma questão de tempo.
- Colocar praticantes de vertentes religiosas em caixas fechadas na grande maioria das vezes é apenas uma forma de pertencimento do praticante, podendo conhecer outros praticantes que tem práticas semelhantes. Eu arrisco a dizer que da mesma forma que ninguém é geneticamente idêntico ao outro, também não existe um praticante igual ao outro, até mesmo dentro da mesma vertente. Inclusive, esse é um dos grandes desafios de se manter práticas coletivas. Além de ser o motivo de surgirem vertentes novas a cada dia.
- A pluralidade religiosa precisa ser encarada com admiração. Não se deve buscar a homogeneização das práticas e nem a anulação da particularidade de cada um. Portanto, fique tranquilo se não encontrar algo que você se encaixa totalmente, é normal. Apenas busque trocar conhecimentos com outras pessoas e buscar uma base para ter um norte e então se expandir.
Agradecimentos
- Quero aproveitar para agradecer porque eu consultei várias bruxas para a construção desse texto. Eu não queria que ficassem só com a minha visão sobre o assunto. Então ficam os agradecimentos a:
- Strega Morgana do @contosdamitologia;
- Melissas de Perséfone, as bruxas Pandora e Safira;
Referências
- Andrade, M. T. R., & Noroefé, A. R. B. (2022). O cristianismo como religião do Império Romano e a sociedade contemporânea. Caderno Intersaberes, 11(36), 17-34.
- Veyne, P. (2010). Quando o nosso mundo se tornou cristão (312-394). trad. Marcos de Castro. Rio de Janeiro: Civilização brasileira.
- Neto, H. S. (2011). O Edito de Milão e o Princípio da Liberdade Religiosa. Revista da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, 17.
- Rüpke, J. (Ed.). (2013). The individual in the religions of the ancient Mediterranean. Oxford University Press.
- Bezerra, K. O. (2019). Paganismo contemporâneo no Brasil: a magia da realidade. Tese de doutorado, Universidade Católica de Pernambuco.
- La fiebre del paganismo en Estados Unidos y las nuevas experiencias que puedes vivir. Disponível em <https://www.nationalgeographic.es/viaje-y-aventuras/2023/03/paganismo-moda-estados-unidos-experiencias> Acessado em 09/10/2023.
- Ainda existe paganismo eslavo? Disponível em <https://br.rbth.com/cultura/82635-ainda-existe-paganismo-eslavo> Acessado em 09/10/2023.
- Os antigos deuses da Grécia estão prontos para o seu sacrifício. Disponível em <https://theoutline.com/post/2843/hellenism-legalized-greece> Acessado em 09/10/2023.