Conceitos básicos,  Filosofia grega

Mýthos x Lógos

Introdução

  • Na filosofia grega, a distinção entre Mýthos e Lógos marca uma transição fundamental no modo como os gregos antigos explicavam o mundo e a existência. Essa diferença reflete a mudança de uma visão tradicional, baseada em narrativas simbólicas, para uma abordagem racional e argumentativa.
  • Essa transição não foi uma substituição abrupta, mas um processo gradual. A partir do século VI AEC, pensadores como os pré-socráticos começaram a questionar os mitos tradicionais, buscando explicações racionais e sistemáticas para o universo. Essa mudança é vista como o nascimento da filosofia e da ciência.
  • Contudo, o Mýthos e o Lógos coexistiram por muito tempo, inclusive sem grandes diferentes de significado. Até mesmo filósofos como Platão e Aristóteles utilizavam metáforas míticas em seus escritos para ilustrar conceitos filosóficos mais profundos.
Estátua de Platão.

Rito e ritual

  • Antes de chegarmos em mýthos e lógos, é preciso que entenda o que é o rito e o ritual.
  • O rito é um conjunto de atividades que marca uma mudança de estado, transição, passagem de tempo ou início de um novo estado.
  • Portanto, o rito é uma iniciação. Ele é um marco, onde antes de seu acontecimento existia um estado 1 e após o seu acontecimento, existe um estado 2. Não tem como retornar mais ao estado 1 uma vez sendo transformado. Algo muda a partir desse acontecimento, é uma transformação.
Rito como um acontecimento que gera uma mudança de estado irreversível.
  • Exemplos de ritos que causam mudanças irreversíveis são as mudanças de estações, os aniversários, o término de uma faculdade, a gestação.
  • Nem todo rito é considerado especial. Os componentes da nossa rotina costumam ser considerados ordinários, comuns e não são celebrados na maioria das vezes. Como tomar banho, alimentar-se, ir ao trabalho e voltar, acordar e ir dormir. Eles são ritos diários, mas nem sempre são feitos rituais para eles.
  • No entanto, alguns ritos são especiais e fogem do ordinário. Nesses casos, fazemos rituais para demonstrar a importância do rito. Quando decidimos fazer um ritual, estamos informando para a nossa psiquê que aquele rito é especial e importante e logo, alguma mudança significativa vai começar a partir dele.
  • O ritual é composto por comportamentos e práticas que comunicam o que é sagrado ou especial de alguma forma. Pode ser chamada também de festa sagrada ou festival religioso. Rituais podem ser simples ou elaborados, mas algo é feito para simbolizar a importância que entendemos nele.
  • Rituais podem ser repetidos de maneira cíclica em caso de ritos que se repetem periodicamente, como aniversários, estações e fases da lua, ou podem ser únicos, marcando ritos que só acontecem uma vez, como nascimentos, puberdade, menopausa. Tudo depende da frequência que o rito sagrado acontece.
  • Normalmente nos rituais existem narrativas mitológicas que são revividas, reencenadas ou relembradas. Portanto, os rituais nos lembram dos mitos, com isso, lembram também da santidade dos personagens mitológicos. Por isso, é frequente que símbolos dos mitos também estejam presentes nos rituais. Com isso, todo ritual atua na reatualização do mito.
  • O conjunto de ritos que vão merecer rituais vai depender de cada pessoa em cada paradigma religioso.
Exemplos de ritos que acontecem na natureza.
  • Nós fazemos rituais para demonstrar que alguns ritos são especiais, mas por que os ritos acontecem? A humanidade sempre buscou interpretar e explicar o motivo dos ritos acontecerem.
  • Essas explicações podem ser feitas por uma esfera abstrata e uma esfera concreta, ou seja, narrativas mitológicas ou lógicas. Que em grego tem relação com os termos mythos e logos.
  • É importante dizer que antes de Platão não se tinha uma diferença clara entre esses termos, sendo usados sem muita discriminação.

Mýthos: o discurso mítico

  • Mýthos (do grego Μῦθος, significa “narrativa”, “relato” ou “fábula”) no contexto grego, refere-se às histórias tradicionais, frequentemente de caráter religioso, que explicavam a origem do mundo, os fenômenos naturais e a condição humana por meio de relatos envolvendo deuses, heróis e forças sobrenaturais.
  • Se formos explicar um rito observado na natureza por uma esfera abstrata, o mythos passou a significar uma narrativa monológica, ou seja, é um monólogo, uma história narrada por uma pessoa onde se utilizam imagens e símbolos que exigem uma interpretação.
  • A narrativa mitológica tem relação com discursos inverificáveis por métodos científicos, e pode se dirigir a nenhuma conclusão. O mýthos busca refletir sobre assuntos inacessíveis e abstratos, gerando reflexões e explicações de ritos através de emoções, sentimentos e conexões religiosas. Daí surgem o que chamamos de mitos. Eles podem variar de acordo com a cultura, o tempo e o espaço.
  • Características:
    • É atemporal e simbólico: não busca precisão histórica ou causalidade lógica.
    • Baseia-se em tradições orais: os mitos eram transmitidos de geração em geração e tinham função educativa e cultural.
    • Explica o inexplicável: aborda temas como a criação do cosmos, o sentido da vida e o destino humano com imagens e metáforas.
    • Autoridade externa: a verdade do mito era sustentada pela aceitação coletiva e pela veneração religiosa.
  • Exemplo 1: Na cosmogonia de Hesíodo, o universo surge a partir do Caos, seguido pelo surgimento de Gaia (Terra) e outros deuses primordiais.
  • Exemplo 2: O rapto de Perséfone como explicação do surgimento das estações de fartura e de escassez.

Lógos: o discurso racional

  • Lógos (do grego Λόγος, significa “razão”, “discurso” ou “palavra”) representa a tentativa de compreender o mundo por meio da análise racional e da argumentação lógica.
  • Se formos para uma esfera concreta para explicar um rito observado na natureza, o logos é uma narrativa com um ritmo dialógico, por terem regras formais a serem seguidas, como uma argumentação para gerar resultados.
  • A narrativa lógica possui argumentos verificáveis por meios científicos, porque segue uma ordem racional, com regras que levam a uma conclusão. O logos busca refletir sobre os acontecimentos do mundo, gerando reflexões e explicações de ritos através de processos materiais.
  • Os argumentos científicos também podem variar ao longo do tempo devido ao acúmulo de conhecimentos sobre um rito específico. Ele é uma preocupação para os cientistas das mais diversas áreas desde filosofia até as demais áreas do conhecimento formal.
  • É a partir da distinção do lógos que os cientistas criaram o método científico para ser aplicado para encontrar explicações em ritos de interesse científico.
  • Características:
    • Baseia-se na razão e na observação: o Lógos busca explicações causais e racionais para os fenômenos.
    • Funda-se na crítica e no debate: não aceita tradições sem questionamento.
    • Progressivo e sistemático: as ideias podem ser refinadas e corrigidas ao longo do tempo.
    • Universalidade: aspira a verdades aplicáveis a todos, independentemente de crenças ou contextos culturais.
  • Exemplo: Na filosofia pré-socrática, Tales de Mileto argumenta que a água é o princípio fundamental (arqué) de todas as coisas, com base em observações do mundo natural.

Exemplo de mýthos e lógos

  • Vamos pensar no rito: o coração de uma pessoa batendo acelerado após ver alguém que ela tem interesse de relacionamento.
    • Se formos explicar através do mýthos, podemos dizer que Afrodite e Eros estão agindo sobre essa pessoa, fazendo ela sentir os efeitos de um sentimento sob domínio desses deuses.
    • Se formos explicar através do lógos, podemos analisar a situação que gerou a aceleração do coração. Uma das hipóteses é que após ter o estímulo visual específico, as glândulas adrenais da pessoa começou a liberar adrenalina na corrente sanguínea o que levou a aceleração do coração.
Esquema para a explicação de um rito.
  • Perceba que o lógos é verificável. É possível medir a concentração de adrenalina no sangue da pessoa. Caso seja baixo, outras hipóteses podem ser testadas como anomalias no formato do coração, excesso de gordura ou aumento de hormônios e por aí vai.
  • O mesmo não acontece com o argumento mitológico, já que não é possível testar a ação das divindades para dizer se é verdadeiro ou se é falso. O que não tira também a sua validade.
  • Qualquer outro rito pode ter essa dupla interpretação. Fato é: não existe uma hierarquia onde uma interpretação é melhor ou mais válida que a outra.
  • Um mesmo rito pode ter vários mitos diferentes explicando-o, assim como cada área científica pode adicionar uma camada lógica diferente de explicação sobre o mesmo rito.
  • Aumentar a nossa interpretação o rito é sempre válida, adicionando camadas sobre o mesmo rito. Ao meu ver, ambas as visões tornam o rito ainda mais deslumbrante, significativo e completo.
  • Até por essa razão que eu acho muito enriquecedor quando as pessoas conseguem conciliar ciência e religião. Cada campo do conhecimento tem uma preocupação e métodos diferentes para ver uma mesma situação, elas podem ser complementares.
Explicação de Mýthos e Lógos a partir de 04:18.

Referências

  1. Eliade, M., & Fernández, L. G. (1981). Lo sagrado y lo profano (Vol. 3). Barcelona: Labor.
  2. Morais, E. M. M. (1997). A filosofia entre o lógos e o mýthos: lições que recebemos de Platão. Princípios: Revista de Filosofia4(5), 6.

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