Na filosofia grega, a distinção entre Mýthos e Lógos marca uma transição fundamental no modo como os gregos antigos explicavam o mundo e a existência. Essa diferença reflete a mudança de uma visão tradicional, baseada em narrativas simbólicas, para uma abordagem racional e argumentativa.
Essa transição não foi uma substituição abrupta, mas um processo gradual. A partir do século VI AEC, pensadores como os pré-socráticos começaram a questionar os mitos tradicionais, buscando explicações racionais e sistemáticas para o universo. Essa mudança é vista como o nascimento da filosofia e da ciência.
Contudo, o Mýthos e o Lógos coexistiram por muito tempo, inclusive sem grandes diferentes de significado. Até mesmo filósofos como Platão e Aristóteles utilizavam metáforas míticas em seus escritos para ilustrar conceitos filosóficos mais profundos.
Antes de chegarmos em mýthos e lógos, é preciso que entenda o que é o rito e o ritual.
O rito é um conjunto de atividades que marca uma mudança de estado, transição, passagem de tempo ou início de um novo estado.
Portanto, o rito é uma iniciação. Ele é um marco, onde antes de seu acontecimento existia um estado 1 e após o seu acontecimento, existe um estado 2. Não tem como retornar mais ao estado 1 uma vez sendo transformado. Algo muda a partir desse acontecimento, é uma transformação.
Exemplos de ritos que causam mudanças irreversíveis são as mudanças de estações, os aniversários, o término de uma faculdade, a gestação.
Nem todo rito é considerado especial. Os componentes da nossa rotina costumam ser considerados ordinários, comuns e não são celebrados na maioria das vezes. Como tomar banho, alimentar-se, ir ao trabalho e voltar, acordar e ir dormir. Eles são ritos diários, mas nem sempre são feitos rituais para eles.
No entanto, alguns ritos são especiais e fogem do ordinário. Nesses casos, fazemos rituais para demonstrar a importância do rito. Quando decidimos fazer um ritual, estamos informando para a nossa psiquê que aquele rito é especial e importante e logo, alguma mudança significativa vai começar a partir dele.
O ritual é composto por comportamentos e práticas que comunicam o que é sagrado ou especial de alguma forma. Pode ser chamada também de festa sagrada ou festival religioso. Rituais podem ser simples ou elaborados, mas algo é feito para simbolizar a importância que entendemos nele.
Rituais podem ser repetidos de maneira cíclica em caso de ritos que se repetem periodicamente, como aniversários, estações e fases da lua, ou podem ser únicos, marcando ritos que só acontecem uma vez, como nascimentos, puberdade, menopausa. Tudo depende da frequência que o rito sagrado acontece.
Normalmente nos rituais existem narrativas mitológicas que são revividas, reencenadas ou relembradas. Portanto, os rituais nos lembram dos mitos, com isso, lembram também da santidade dos personagens mitológicos. Por isso, é frequente que símbolos dos mitos também estejam presentes nos rituais. Com isso, todo ritual atua na reatualização do mito.
O conjunto de ritos que vão merecer rituais vai depender de cada pessoa em cada paradigma religioso.
Nós fazemos rituais para demonstrar que alguns ritos são especiais, mas por que os ritos acontecem? A humanidade sempre buscou interpretar e explicar o motivo dos ritos acontecerem.
Essas explicações podem ser feitas por uma esfera abstrata e uma esfera concreta, ou seja, narrativas mitológicas ou lógicas. Que em grego tem relação com os termos mythos e logos.
É importante dizer que antes de Platão não se tinha uma diferença clara entre esses termos, sendo usados sem muita discriminação.
Mýthos (do grego Μῦθος, significa “narrativa”, “relato” ou “fábula”) no contexto grego, refere-se às histórias tradicionais, frequentemente de caráter religioso, que explicavam a origem do mundo, os fenômenos naturais e a condição humana por meio de relatos envolvendo deuses, heróis e forças sobrenaturais.
Se formos explicar um rito observado na natureza por uma esfera abstrata, o mythos passou a significar uma narrativa monológica, ou seja, é um monólogo, uma história narrada por uma pessoa onde se utilizam imagens e símbolos que exigem uma interpretação.
A narrativa mitológica tem relação com discursos inverificáveis por métodos científicos, e pode se dirigir a nenhuma conclusão. O mýthos busca refletir sobre assuntos inacessíveis e abstratos, gerando reflexões e explicações de ritos através de emoções, sentimentos e conexões religiosas. Daí surgem o que chamamos de mitos. Eles podem variar de acordo com a cultura, o tempo e o espaço.
Características:
É atemporal e simbólico: não busca precisão histórica ou causalidade lógica.
Baseia-se em tradições orais: os mitos eram transmitidos de geração em geração e tinham função educativa e cultural.
Explica o inexplicável: aborda temas como a criação do cosmos, o sentido da vida e o destino humano com imagens e metáforas.
Autoridade externa: a verdade do mito era sustentada pela aceitação coletiva e pela veneração religiosa.
Exemplo 1: Na cosmogonia de Hesíodo, o universo surge a partir do Caos, seguido pelo surgimento de Gaia (Terra) e outros deuses primordiais.
Exemplo 2: O rapto de Perséfone como explicação do surgimento das estações de fartura e de escassez.
Lógos (do grego Λόγος, significa “razão”, “discurso” ou “palavra”) representa a tentativa de compreender o mundo por meio da análise racional e da argumentação lógica.
Se formos para uma esfera concreta para explicar um rito observado na natureza, o logos é uma narrativa com um ritmo dialógico, por terem regras formais a serem seguidas, como uma argumentação para gerar resultados.
A narrativa lógica possui argumentos verificáveis por meios científicos, porque segue uma ordem racional, com regras que levam a uma conclusão. O logos busca refletir sobre os acontecimentos do mundo, gerando reflexões e explicações de ritos através de processos materiais.
Os argumentos científicos também podem variar ao longo do tempo devido ao acúmulo de conhecimentos sobre um rito específico. Ele é uma preocupação para os cientistas das mais diversas áreas desde filosofia até as demais áreas do conhecimento formal.
É a partir da distinção do lógos que os cientistas criaram o método científico para ser aplicado para encontrar explicações em ritos de interesse científico.
Características:
Baseia-se na razão e na observação: o Lógos busca explicações causais e racionais para os fenômenos.
Funda-se na crítica e no debate: não aceita tradições sem questionamento.
Progressivo e sistemático: as ideias podem ser refinadas e corrigidas ao longo do tempo.
Universalidade: aspira a verdades aplicáveis a todos, independentemente de crenças ou contextos culturais.
Exemplo: Na filosofia pré-socrática, Tales de Mileto argumenta que a água é o princípio fundamental (arqué) de todas as coisas, com base em observações do mundo natural.
Vamos pensar no rito: o coração de uma pessoa batendo acelerado após ver alguém que ela tem interesse de relacionamento.
Se formos explicar através do mýthos, podemos dizer que Afrodite e Eros estão agindo sobre essa pessoa, fazendo ela sentir os efeitos de um sentimento sob domínio desses deuses.
Se formos explicar através do lógos, podemos analisar a situação que gerou a aceleração do coração. Uma das hipóteses é que após ter o estímulo visual específico, as glândulas adrenais da pessoa começou a liberar adrenalina na corrente sanguínea o que levou a aceleração do coração.
Perceba que o lógos é verificável. É possível medir a concentração de adrenalina no sangue da pessoa. Caso seja baixo, outras hipóteses podem ser testadas como anomalias no formato do coração, excesso de gordura ou aumento de hormônios e por aí vai.
O mesmo não acontece com o argumento mitológico, já que não é possível testar a ação das divindades para dizer se é verdadeiro ou se é falso. O que não tira também a sua validade.
Qualquer outro rito pode ter essa dupla interpretação. Fato é: não existe uma hierarquia onde uma interpretação é melhor ou mais válida que a outra.
Um mesmo rito pode ter vários mitos diferentes explicando-o, assim como cada área científica pode adicionar uma camada lógica diferente de explicação sobre o mesmo rito.
Aumentar a nossa interpretação o rito é sempre válida, adicionando camadas sobre o mesmo rito. Ao meu ver, ambas as visões tornam o rito ainda mais deslumbrante, significativo e completo.
Até por essa razão que eu acho muito enriquecedor quando as pessoas conseguem conciliar ciência e religião. Cada campo do conhecimento tem uma preocupação e métodos diferentes para ver uma mesma situação, elas podem ser complementares.
Referências
Eliade, M., & Fernández, L. G. (1981). Lo sagrado y lo profano (Vol. 3). Barcelona: Labor.
Morais, E. M. M. (1997). A filosofia entre o lógos e o mýthos: lições que recebemos de Platão. Princípios: Revista de Filosofia, 4(5), 6.