Carpideiras
Introdução
- As carpideiras na eram mulheres contratadas ou voluntárias para expressar publicamente o luto em funerais, desempenhando um papel importante nos rituais funerários.
- Essas mulheres tinham a tarefa de lamentar a perda do falecido de maneira intensa, por meio de choros, gritos, cantos fúnebres e gestos dramáticos, como bater no peito, rasgar as vestes e cobrir-se de cinzas. Elas frequentemente entoavam elegias ou dirges, poemas tristes que exaltavam as virtudes do morto e refletiam sobre a perda sofrida pela comunidade.
Origem
- A profissão de carpideira existe há mais de 2 mil anos, tendo menções na Bíblia e em outros textos religiosos.
“Considerem e chamem carpideiras, para que venham; mandem procurar mulheres hábeis, para que venham. Que elas se apressem e levantem sobre nós o seu lamento, para que os nossos olhos se desfaçam em lágrimas, e as nossas pálpebras destilem água”
Jeremias 9: 17-18. Bíblia Cristã.
I) Egito Antigo
- A forma mais comum e mais natural e experienciar a morte de um familiar ou amigo é através do enorme sentimento sentimento de desespero provocado pela separação.
- Segundo a descrição de Heródoto, feita no século VI AEC, é possível ver que os antigos egípcios incluíam a prática da lamentação em seus ritos fúnebres. Essa lamentação era feita por homens e mulheres, demonstrando o desconforto pela perda do ente querido.
- Muitas pinturas em paredes tumulares, da época do Império Novo, anterior a Heródoto, reforçam seus comentários. Indicando a presença direta dos familiares (viúvas, irmãs e filhas), junto de amigos, conhecidos e serviçais, realizando o lamento.
“Com relação aos funerais e ao luto, os egípcios procedem da seguinte forma: quando morre um alto funcionário, os elementos femininos da família cobrem-se de pó da cabeça aos pés, descobrem os seios,
prendem as vestes com um cinto e, deixando o morto em casa, põem-se a percorrer a cidade, batendo no peito, acompanhadas dos demais parentes. Por sua vez, os homens desnudam também o peito e põem-se a bater nele. Terminada essa cerimónia, levam o corpo para embalsamar”
História, Livro II, de Heródoto.
- Os gestos de dor e lamento eram seguidos de orações, onde as mulheres da família ficavam descalças, ajoelhadas, de cócoras, prostradas, de mãos sobre a cabeça ou erguidas em direção ao céu, com peitos desnudados, com abundantes lágrimas escorrendo pelo rosto.
- As vestes de linho estão frequentemente amarrotadas, com sinal de convulsões emocionais internas que percorria o círculo próximo do defunto. Elas atiravam poeira sobre as suas cabeças.
- Os cabelos das carpideiras estão a serviço de uma situação de aflição emocional. Não é por acaso que a mecha de cabelo é o signo de hieróglifo que representa a dor e lamentação, como também a própria carpideira. Elas são representadas muitas vezes puxando os cabelos. Em algumas representações, é visto o gesto nwn ou nwn m. Ele é o ato de fazer um movimento de colocar o cabelo para frente, tampando o rosto, simbolizando a escuridão que eles estão mergulhando pela dor do luto, mesmo que momentânea.
- Os cabelos são associados a vegetação, pois crescem como as plantas. As lágrimas das carpideiras seriam a água da inundação e os cabelos caídos dos dois lados do rosto, as margens do Nilo e sua vegetação.
II) Mesopotâmia
- Assim como em outras culturas antigas, o luto ritualístico no contexto sumério era uma parte fundamental do ciclo de morte e renascimento, frequentemente associado à fertilidade, à terra e ao poder feminino. As carpideiras, reais ou simbólicas, evocavam a importância da expressão pública do sofrimento como um meio de reequilibrar a ordem cósmica e social após a perda.
- A profissão é mencionada na obra suméria “A descida de Inanna”, datada de cerca de 1900-1600 AEC que narra a jornada de Inanna, a grande deusa e rainha do céu, de seu reino no céu, à terra e ao submundo para visitar sua irmã Ereshkigal, rainha dos mortos.
- No caso do poema, ele reforça o papel crucial das figuras femininas nos rituais de morte e renascimento, conectando-o aos ciclos naturais e às crenças espirituais sumérias.
- Quando Inanna não retorna do submundo, sua fiel serva, Ninshubur, segue suas instruções e clama por ajuda aos grandes deuses Enlil, Nanna e Enki. Para ressuscitá-la, Enki cria duas pequenas figuras (geralmente interpretadas como seres andróginos ou espíritos) que devem visitar Ereshkigal no submundo. Enquanto isso, a descrição de Ereshkigal no poema inclui um comportamento típico de lamentação:
“Ereshkigal, como uma mulher em dores de parto, gemia.
Seus cabelos estavam desgrenhados,
Suas roupas estavam sujas,
E suas lágrimas escorriam como riachos.”
Trecho do poema “A descida de Inanna”.
- Essa cena sugere um paralelo com o papel das carpideiras. O próprio ato de lamentar intensamente, rasgar roupas e expressar fisicamente a dor é uma prática que, no poema, não apenas reflete o sofrimento de Ereshkigal, mas também ressoa com as tradições sumérias de luto e funerais.
- Embora o texto não mencione explicitamente “carpideiras” como um grupo formal, os atos de lamento realizados por Ereshkigal e os rituais relacionados à morte de Inanna podem ser interpretados como expressões arquetípicas dessas práticas.
III) Grécia Antiga
- As carpideiras, muitas vezes mulheres contratadas, expressavam dor e sofrimento pela morte de um indivíduo por meio de gritos, cânticos e gestos dramáticos.
- Lamentações conhecidas como thrênoi eram cantadas para exaltar as virtudes do morto e demonstrar o impacto de sua perda.
- Praticavam gestos de luto, como bater no peito, rasgar as roupas, cobrir a cabeça com cinzas e arrancar os cabelos, demonstrando visualmente a profundidade da perda.
- A lamentação intensa era vista como uma forma de ajudar o morto a alcançar o Hades (o reino dos mortos) e a apaziguar os deuses.
- As carpideiras, junto com parentes e vizinhos, participavam do próthesís (exposição do corpo) e do cortejo funerário (ekphorá), reforçando os laços sociais e os deveres coletivos de honrar os mortos.
- Em certas cidades-estado, como Atenas, houve tentativas de regular o comportamento das carpideiras para evitar excessos, pois o luto exagerado era visto como uma ameaça à ordem pública. Solón, um legislador ateniense, impôs restrições às lamentações excessivas.
IV) Roma Antiga
- Na Roma Antiga, as carpideiras eram conhecidas como praeficae e desempenhavam funções semelhantes às de suas contrapartes gregas, mas com características adaptadas ao contexto romano.
- As praeficae eram geralmente mulheres contratadas que lideravam os cânticos fúnebres (neniae) no funeral, exaltando o falecido e narrando sua vida e feitos. Elas trabalhavam para intensificar a expressão do luto, tornando o funeral um evento emocional e público.
- Além de lamentarem, muitas vezes acompanhavam os cânticos com gestos teatrais, criando um espetáculo visual que demonstrava a perda da família.
- No pompa funebris (processão funerária), as praeficae precediam o corpo do morto, entoando cânticos. Esse cortejo era um evento público e podia incluir músicos, dançarinos e outros elementos de performance.
- Na Roma imperial, havia críticas ao uso de carpideiras devido à artificialidade de sua performance, vista como algo exagerado ou até insincero. Com a influência crescente do cristianismo, que enfatizava um luto mais contido e espiritual, a prática das praeficae começou a desaparecer.
Função social
- O trabalho de carpideiras reflete a necessidade humana universal de rituais estruturados para lidar com a morte e garantir que o falecido seja lembrado e honrado.
- As carpideiras tinham diferentes funções na sociedade grega, entre elas:
- Expressão coletiva do luto: As carpideiras ajudavam a canalizar as emoções da comunidade e a dar voz ao sofrimento de quem muitas vezes não conseguia expressá-lo.
- Rito de transição: Facilitavam a passagem do falecido para o reino dos mortos, garantindo que ele recebesse as devidas honras.
- Conexão com os deuses e tradições: O luto público era uma forma de apaziguar os deuses, honrar os ancestrais e reafirmar os laços sociais da comunidade.
- Aumentar a importância social do falecido: Os cidadãos com maior destaque social possuíam funerais mais prolongados e a presença das carpideiras desesperadas por mais tempo demonstrava a sociedade o valor social daquele falecido.
Carpideiras brasileiras
- As carpideiras no Brasil têm origem em uma combinação de tradições culturais indígenas, africanas e europeias, especialmente ibéricas (portuguesas e espanholas). Essas mulheres, também conhecidas como pranteadeiras ou choradeiras, desempenhavam um papel importante nos rituais funerários em várias regiões do Brasil, especialmente no interior, como parte de práticas tradicionais de luto.
- A prática de carpideiras foi trazida pelos colonizadores portugueses e espanhóis, que já possuíam a tradição de lamentação pública em funerais. Na Península Ibérica, era comum contratar mulheres para chorar e entoar cânticos fúnebres, exaltando as qualidades do falecido e demonstrando a dor da perda. Essa tradição se consolidou no Brasil colonial, especialmente em regiões onde o catolicismo era predominante e onde os ritos funerários eram carregados de simbolismo religioso.
- As culturas africanas, trazidas ao Brasil pelos povos escravizados, também valorizavam expressões ritualísticas de luto. Em diversas tradições africanas, como as do Congo e da Nigéria, lamentar publicamente era parte fundamental do processo de despedida dos mortos e da conexão com os ancestrais. Esses elementos se misturaram às tradições europeias no Brasil.
- Entre os povos indígenas do Brasil, os ritos funerários muitas vezes incluíam cantos e lamentações coletivas para honrar os mortos. Essa influência também contribuiu para a construção de práticas híbridas nas comunidades rurais e periféricas do Brasil.
- O ritual fúnebre inclui a preparação do corpo, velório e enterro. Ele acontece com cânticos, bebidas e comidas. O velório pode ser chama de diferentes nomes como “sentinela” (em Itapipoca, Tauá e Juazeiro do Norte), “quarto” (em São Gonçaloo do Amarante), “guarda” (em Limoeiro do Norte). É uma reunião de familiares e amigos que vem dar adeus ao falecido e velá-lo ao som das carpideiras.
- Existe uma farta distribuição de comida e bebidas, cachaça e café. São rezados terços, ofícios das Almas, ladainhas e cânticos. Em alguns locais, ainda se cantam as “inselências”, versos cantados repetidamente em diversas letras e músicas, puxadas por cantadeiras ou carpideiras. Apesar de diversos componentes do ritual fúnebre já ter se perdido no sertão como as inselências e as carpideiras, em alguns lugares, ele ainda sobrevive.
“As carpideiras costumam treinar seus lamentos atrás da Matriz. Uivam baixinho. Crescendo. Um grito prolongado. Resfolegar decrescente. Um pranto. Descanso. Recomeçar o lamento. Dolorido. Crescente. Baixar. Descanso. Só assim. Não mais. Vez por outra resfolegar resfolegando Seu Santo Nome. De Cristo. Santo Deus! Um escândalo! As carpideiras de véu negro. A noite. Nenhuma estrela. Nem lua. Só o lamento.”
Fragmento do poema “As Carpideiras” de Arthur Lopes Filho.
Referências
- Florenzano, M. B. B., Prado, M. L. C., & Capelato, M. H. (1996). Nascer, viver e morrer na Grécia antiga. São Paulo: Atual.
- Lopes Filho, A. (1983). As carpideiras. Revista Literária do Corpo Discente da Universidade Federal de Minas Gerais, 127-128.
- Lundy, P. (2018). Sacred Songs for the Dead: Women had few powers in Ancient Greece-except in death. History Today, 68(1)..
- Sales, J. D. C. (2016). As carpideiras rituais egípcias: entre a expressão de emoções e a encenação pública: a importância das lamentações fúnebres. Isimu: revista sobre Oriente próximo y Egipto en la antigüedad, 18, 61-76.
- Barroso, O. (2000). Rituais Fúnebres. Sistema de Informação da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará (Sinf Secult). Relatório de Listagem de Patrimônio Imaterial.
- Salazar, J. F. M. (2014). A natureza da voz: há um cantar para os mortos? INTERSEMIOSE 3: 5.
- Miranda, M. (2005). O silêncio das carpideiras: romance. Leya.
- Carpideiras, panos brancos sobre os objetos e santinhos: o que restou do “morrer de antigamente”? Disponível em <https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/carpideiras-panos-brancos-sobre-os-objetos-e-santinhos-o-que-restou-do-morrer-de-antigamente-es4tqvyhg60hqp8r0wga3k4ol/> Acessado em 19/01/2025.