Favela é uma planta da família das euforbiáceas e é uma planta endêmica do Brasil, o que significa que não é encontrada em nenhum outro lugar do mundo.
As suas sementes cheias de óleo e alimentícias são sementes em forma de fava, por isso, o seu nome “favela”.
O texto de hoje é uma homenagem e um resgate à ancestralidade do termo “favela” que por conta da planta passou a dar nome às periferias habitadas por pessoas vítimas da desigualdade social.
Para mim, usar o termo favela e favelada é dizer não para a higienização, lembrar da história da opressão nesse país e da resistência das minorias.
As favelas no Brasil são uma consequência da desigualdade econômica e da migração de áreas rurais para áreas urbanas em busca de trabalho, muitas vezes pouco remunerado. Outro fator que propiciou a criação de favelas é a falta de planejamento urbano e oferta de moradias dignas e acessíveis para a população.
Os estados de São Paulo e Rio de Janeiro concentram a maior quantidade de pessoas morando em favelas em números absolutos. No Rio de Janeiro, o surgimento das favelas é complexo e tem vários fatores que influenciaram. Veja alguns exemplos a seguir.
Em 1808, 30% da população carioca é expulsa de suas casas para dar moradia aos acompanhantes da família real portuguesa e com isso, inúmeras famílias passam a viver em cortiços. Com o abandono de grandes casas que não conseguiam se sustentar sem a escravização, o número de cortiços aumenta após 1822, com a saída dos portugueses com a independência do Brasil.
Na segunda metade do século XIX com fortes movimentos a favor do fim da escravidão no Brasil, algumas pessoas escravizadas começaram a comprar sua liberdade e outros fugiam para quilombos. Com a lei do ventre livre em 1871 e o fim do sistema escravocrata em 1888, mas sem políticas de inserção, os ex-escravizados começaram a migrar para cortiços, quilombos ou começam a construir casas em áreas desvalorizadas como morros, grotas e pântanos.
Com a demolição dos cortiços do centro do Rio de Janeiro pelo prefeito Pereira Passos, entre 1902 e 1906, sem indenização, os moradores começaram a ocupar os morros mais próximos.
No século XX, com o grande fluxo de imigrantes para o Rio de Janeiro, com empregos que não pagavam o suficiente para comprar ou alugar uma casa digna, as pessoas começaram a construir em terrenos ilegais próximos aos locais de trabalho. Com isso, se intensifica a construção ilegal e sem regras. As favelas modernas surgem na década de 1970 com a chegada de pessoas de áreas rurais do Brasil para as cidades.
Cortiço da Rua dos Inválidos, final século XIX.
400 jagunços prisioneiros, 2 de outubro de 1897. Canudos, Bahia. Acervo Museu da República. Imagem recuperada digitalmente pelo Instituto Moreira Salles. Fotógrafo: Flavio de Barros.
A origem do termo “favela” começa com a Guerra de Canudos. Ele foi um conflito armado entre o exército brasileiro e membros da comunidade liderada por Antônio Conselheiro, em Canudos no interior do estado da Bahia, entre 1896 e 1897. A motivação foi a revolta pelas secas e desemprego que levavam pessoas a Canudos em busca de salvação religiosa oferecida pelo Antônio Conselheiro. Começaram a ter rumores que a comunidade iria atacar cidades vizinhas, depor o governo republicano e reinstalar a monarquia. Mesmo sem provas desses rumores, o exército foi enviado ao local, o que levou ao massacre de mais de 20 mil sertanejos e 5 mil militares. Sem falar da degola de muitos prisioneiros e incêndio de todas as casas do local.
A cidade de Canudos foi construída junto a alguns morros, entre eles o Morro da Favela, porque encontravam lá a planta Cnidoscolus quercifolius, chamada de favela, encobrindo a região. Alguns soldados que retornaram da guerra para o Rio de Janeiro em 1897, deixaram de receber o soldo e se instalaram em construções provisórias no Morro da Providência, que passou a ser chamado de Morro da Favela, em referência ao local original. A partir da década de 1920, as habitações improvisadas e sem infraestrutura que ocupavam morros passaram a ser chamadas de favelas.
O morro da Providência se tornou um local ideal para abrigar famílias de baixa renda, cercado de pedreiras, fábricas e por linhas da Estrada de Ferro Central do Brasil, cemitério e a região portuária. As primeiras casas da Providência começaram na parte baixa do morro, com o formato das casas existentes em Canudos. Em 1904, o governo tentou a primeira remoção da favela da Providência, frustrada pela revolta popular chamada de “Revolta da Vacina”.
Na época da ditadura, tanto o governo quanto a polícia chamavam o pobre e desempregado de “classe perigosa”. Apenas no final da década de 1970 que o tráfico começa a dominar as favelas cariocas, junto com contraventores do jogo do bicho. Tudo intensificado pela corrupção policial e política.
Canudos antes da guerra.
Morro da Providência considerada primeira favela do Rio de Janeiro.
Favela (Cnidoscolus quercifolius)
Origem: Endêmica da caatinga brasileira (não existe em nenhum outro país).
Nomes comuns: faveleiro, faveleira, mandioca-brava, favela-de-cachorro.
Trata-se de um arbusto que possui espinhos e flores brancas. O fruto é uma cápsula que contém sementes, oleaginosas em forma de fava.
A favela é bastante popular na medicina popular do sertão brasileiro. A favela possui propriedades analgésicas, anti-inflamatórias, cicatrizantes, diuréticas e antitumoral.
Ela é uma fonte de alimentação humana e animal no semi-árido paraibano.
Tanto a favela quanto outras plantas da caatinga são menos estudadas, apesar de seu grande potencial já validado pelo conhecimento popular.
Favela e a bruxaria
Para mim, conhecer a existência da planta favela e como ela acabou sendo associada com os locais chamados favela foi uma revolução na minha visão sobre o lugar. Eu nasci em favela e vi seu nome sendo higienizado para “comunidade” e se chamar “favelado” se tornando algo negativo.
Hoje eu entendo que esse só foi um projeto de apagamento histórico. Os moradores das favelas movem a economia e são lembrete constante de como a desigualdade social adoece a nossa sociedade.
Por isso, mesmo que um dia eu deixe de morar em favela, serei sempre uma favelada, pelo meu modo de ver o mundo, me vestir e me relacionar.
A bruxaria e a favela tem muita relação porque tanto a figura da bruxa quanto do favelado são de marginalidade, somos renegados e o poder público dificilmente atua nos protegendo.
Pensar na planta favela, no massacre de Canudos, das consequências da escravidão, da exploração da mão de obra, da corrupção, da falta de direitos básicos… tudo entrelaçado e jogado para debaixo do tapete.
Somos sempre os culpados, sejam bruxas e/ou favelados. A culpa da pobreza é do pobre? Somos um lembrete de que precisamos de mudanças e rápido.
A bruxaria e a favela atua em mim como uma forma de resistência e busca por uma revolução social.
Crianças brincando de pipa em favela.
Referências
Novaes, T. E. R., Novaes, A. S. R., Glusczak, L., & Vilarinho, L. B. O. (2021). Potenciais medicinais da faveleira (Cnidoscolus quercifolius) e seus usos na saúde humana: uma breve revisão. Research, Society and Development, 10(2), e43910212845-e43910212845.